quarta-feira, 25 de novembro de 2015

134 PAZADAS NO MEU PRIMEIRO FUNERAL

134 PAZADAS NO MEU PRIMEIRO FUNERAL


(homenagem ao senhor R que falava muito comigo do benfica
e que morreu ontem, boa viagem)


não há melhor filosofia
do que a escrita nos pacotes de açúcar

ao pedir um café
ganhamos sapiência
e no pacote a mim sai-me

"não há nada melhor que morrer
para dar real valor à vida "

a seguir leio a merda de um jornal qualquer
há que dar o ar de interessado pelo ecosistema

saio e vou até à capela
ao centro estou lá
com uma placa
aqui jaz policarpo

quantos foram ao meu funeral ?
isto faz a diferença na felicidade
que posso vir a ter hoje

foram 13 pessoas.
não, foram 12 pessoas e 1 cão.
não um cão qualquer, um grand annois
que dei há uns anos atrás
como se fosse uma coisa que se oferece
por sinal Box era um excelente amigo

em caminho do cemitério
foram todos atrás de mim de forma ordenada
e até por prioridades
os que me adoram, eram 3
os que me amam, eram 1
os que me toleram, eram 8
os que fingem, eram 1
todos foram em silêncio
um silêncio aparente
porque não há silêncio
enquanto ouvirmos a nossa voz dentro da nossa cabeça

digo vos que estar morto não é muito agradável
fico com os pés encolhidos
e isso aborrece-me
gostava que em dissessem quem mandou
fazer a minha caixa negra a um senhor de 87 anos
e porque me deram 1 metro e meio de cumprimento
é essa a minha dimensão ?
1 metro e cinquenta ?
nunca fui grande em vida
sempre fui maior
e aqui hoje, está a prova, sou maior que o metro e cinquenta
da caixa negra (na realidade era cor de mel tipo pinho, muito bonita para pôr
nas entradas das casas a condizer com os móveis de cozinha do Ikea)

adiante...
na tal procissão de 12 pessoas e um cão grand annois
vinha uma senhora alta, era a oitava
com uns 70 anos e com um chapéu farto de uma aba grande
a cobrir o seu corpo um casaco roxo.
ao seu lado uma outra senhora dos seus cinquenta anos e com uma casaca
de malha tipo azulado cor de vinho
esta mancava um pouco
a dor asiática ataca muito nesta idade..

a tal senhora oitava
perguntou à outra...
quem era ele ? e aponta para o carro de mão que empurrava
a minha caixa negra

a senhora de cinquenta anos que mancava com a tal casaca
de malha tipo azulado cor de vinho
responde de forma peremptória

o senhor policarpo é incompleto..
como poeta dava erros de gramática
como psicólogo nunca quis estudar durante 4 anos
e ler livros densos com mais de  50 páginas
como pai não estava presente
como marido fodia muito fora
como pessoa oscilava entre o bem e o mal muitas vezes

por vezes cuspia para a rua
e atirava papéis para o chão como um acto de revolta
outras tantas
guardava lixo nos bolsos todos
para o ecoponto

a senhora oitava de uns 70 anos com um chapéu de aba
e casaco roxo
diz-lhe
Policarpo Incompleto, nome interessante.
a outra senhora de cinquenta anos
com uma casaca de malha tipo azulado cor de vinho
espantada responde
vá para o caralho minha senhora
e afasta-se
para repor o ar adequado a um funeral
a tristeza certa na cara e os olhos a vaguear pelo chão

digo-vos eu
por esta gente que me acompanha
pode-se atestar a minha qualidade como morto
mais tarde
vim a saber
que a tal senhora de 70 anos que era a oitava
com um chapéu de aba e um casaco roxo
tinha-se enganado
veio no funeral das 10 da manhã
em vez de vir no funeral das 11 e 30
confundiu-se com as horas
que aborrecimento para ela...


da próxima vez que morrer
já decidi uma coisa
não quero acabar com pazadas de terra.
porque neste meu funeral
foram exactamente 134 pazadas que me enviaram
no buraco por cima da caixa negra
72 dadas pelo gordo que tinha as calças de ganga
a cair e dai a trágica imagem de pelos a sairem pelo cu acima
até me benzo
deus tenha piedade de todos os rabos em condições
o outro finório despachou
62 pazadas de terra

o que é isto ?
que merda de encenação é esta ?
quem escreveu isto ?
abre se um buraco banal para qualquer cão
coloca-se  lá uma pessoa como eu que viveu
mais de 50 anos com respeito e com valor
as pessoas a verem
no meu caso eram 12 e 1 cão grand annois
e depois dois tipos coveiros
pôe se num duelo de pazadas
a atirar a terra para cima da caixa
e as pessoas a verem
por quê e para quê ?

pode ser com a vá esperança
que se enterre um homem de valor
para dai crescer uma árvore ?
não, não me parece

enfim coveiros, vão para o caralho
não quero na próxima vez levar com pazadas
quero arder em lume brando
igual ao modo como vivi
a arriscar queimar me na vida
a querer sentir me vivo
quero na minha lápide

policarpo, homem que é feliz
fez -se a si
ama umas oito pessoas
e essas também lhe correspondem

quanto a elas venham de lingerie rosa
sabem o quanto sempre gostei delas
a eles tragam bandeiras do benfica

tenho que ir
esta manhã de novembro
está fria
bem podia ter escolhido morrer na primavera
era mais certo que durante o verão todos me esqueciam





2 comentários:

  1. Ao sentimento de revolta e inquieta preocupação junto o facto de mesmo sentindo que as pazadas eram longas e sem sentimento a acção e o momento eram de profunda dor e fadiga! Uma fadiga que não acalma com as 134 pazadas nem com tantas outras que ao longo da vida foram dadas ! A fadiga não acaba, inicia se, move se flutua até ao próximo estado ou momento

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